Poesia e espiritualidade

Por Gladir Cabral

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A poesia e a vida espiritual guardam grande afinidade. Não por acaso, boa parte das Escrituras Sagradas está registrada em linguagem poética. O Salmo 23, por exemplo, mais do que uma profunda oração, é um poema. Pode-se dizer até que o Salmo 23 é uma oração poética, ou uma poesia orante. Por isso a linguagem poética não deve soar estranha aos ouvidos daqueles que desejam expressar e aprofundar sua fé, sua relação com Deus.

Se o mundo foi criado pela palavra de Deus, o mundo é, na verdade, um grande poema vivo e movente do grande Autor da vida. Por isso o apóstolo Paulo comenta que nós somos poemas de Deus, somos feitura sua em Cristo (Ef 2.10). Reverbera em nós a palavra do Criador e a palavra do Redentor. Ele nos diz, ele nos escreve, e revisa. Ao responder à palavra do Autor da poesia, também fazemos poesia. Não há outro jeito. A palavra do Poeta é eficaz e não volta vazia, sem realizar antes o que ele quer (Is 55.11). Isaías também foi escrito em linguagem poética.

A escritora brasileira Clarice Lispector lembra-nos de que a poesia traz em si o desejo do inefável, da palavra que transcende a si mesma, quebra o silêncio e traz o que é novo, o inesperado. “Porque há o inefável. O amor não é um número. A amizade não é. Nem a simpatia. A elegância é algo que flutua. E se Deus tem número – eu não sei. A esperança também não tem número. Perder uma coisa é inefável: nunca sei onde as coloquei. Inclusive perco até a lista de coisas a não perder. Morte é inefável. Mas a vida também o é.”Clarice enfatiza a dimensão impalpável da vida, a criatividade, a escrita de um texto, a existência dos animais, o amor. “E tudo isto é inefável.” Tudo é delicado, sutil, envolto em mistério.

Dietrich Bonhoeffer, além de notável teólogo, foi também um admirador da poesia e a utilizava constantemente em seus sermões, cartas e em sua vida devocional. Seus poemas ganharam notoriedade juntamente com suas cartas. O poema “Quem sou eu?”2 guarda profunda sensibilidade estética e teológica. Ali sua fragilidade humana se confronta com o olhar admirado das pessoas e com a graça de Deus, que a tudo redime. Notável também é seu último poema: “Por bons poderes”,3 em que seu senso de conforto espiritual e confiança contrasta com a precariedade do momento em que vivia. Logo ele seria morto pelos nazistas.

Outro cristão que fez da poesia seu veículo de expressão e cultivo espiritual foi Thomas Merton. Responsável pelo reavivamento da vida contemplativa e da meditação no cristianismo moderno, Thomas Merton escreveu vários livros em que a poesia e a teologia dialogavam. Na obra Diálogos com o Silêncio 4, que ele mesmo ilustrou, há poemas cheios de força meditativa, nos quais ele escreve coisas como: “Meu Senhor Deus, não tenho ideia para onde estou indo. / Não vejo a estrada à minha frente. Não sei ao certo onde me levará… Mas creio que o desejo de Te agradar de fato Te agrada. E espero ter esse desejo em tudo o que faço”.

A poesia nos ensina o valor do silêncio e o valor da palavra. No fundo, a poesia cresce com o silêncio e o significa. A poesia nos faz abrir os olhos e os ouvidos para o mundo ao redor, e nos faz abrir o coração para o Eterno, o inefável, aquele que nos inspira e desafia a viver. Ela traz o estranhamento diante da realidade. Ela nos permite tomar consciência do tempo presente e da Presença.

Notas
1. LISPECTOR, Clarice. Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
2. BONHOEFFER, Dietrich. “Quem sou eu?”. Disponível aqui.
3. _____. “De bons poderes”. Disponível aqui.
4. MERTON, Thomas. Diálogos com o silêncio: orações & desenho. Rio de Janeiro: Fissus, 2014.

• Gladir Cabral é pastor, músico e professor de letras na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). 

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