Pode um cristão ser possuído por Demônios?

por Dr. Paulo Romeiro

Um dos temas mais polêmicos que a batalha espiritual tem gerado é se um cristão pode ter demônios. Muitos ministérios de libertação incluíram algum ritual para expulsar demônios de crentes em seus programas e isso tem acontecido em simpósios de batalha espiritual em muitas igrejas. Alguns teólogos também passaram, nos últimos anos, a aderir a tal posição e muitos deles reconhecem que o assunto é controvertido. De qualquer forma, a Bíblia Sagrada tem a palavra final sobre esta questão ou sobre qualquer outro assunto relacionado com a vida espiritual e o cristão.

Merrill F. Unger, um autor lido e seguido por várias pessoas que hoje desenvolvem ministérios de libertação espiritual no Brasil, reconhece a dificuldade de se tratar do assunto, ao declarar: A verdade da questão é que as Escrituras em nenhum lugar declaram que um verdadeiro crente não pode ser invadido por Satanás ou seus demônios. Naturalmente, a doutrina deve sempre ter precedência sobre a experiência. Nem pode a experiência jamais oferecer base para a interpretação bíblica. Apesar disso, se experiências consistentes chocam com uma interpretação, a única conclusão possível é de que há alguma coisa errada, ou com a própria experiência ou com a interpretação da Escritura que vai contra ela. Certamente a Palavra inspirada de Deus nunca contradiz a experiência válida. Aquele que procura a verdade com sinceridade deve estar preparado para consertar sua interpretação a fim de trazê-la em conformidade com os fatos como eles são. (Merrill F. Unger, What Demons Can Do To Saints (O que os Demônios Podem fazer aos Santos) (Chicago, E.U.A., Moody Press,1991), p. 69.)

Unger já ensinou e escreveu, no passado, que somente os incrédulos estão sujeitos a endemoninhamento ou possessão demoníaca. Mais tarde ele mudou de ideia, e diz por que: Em Biblical Demonology (Demonologia Bíblica), publicado primeiramente em 1952, a posição tomada era de que somente os incrédulos são expostos ao endemoninhamento. Mas, através dos anos, várias cartas e relatórios de casos de invasão demoníaca de crentes têm chegado a mim de missionários em várias partes do mundo. Como resultado, em meu estudo sobre a explosão atual do ocultismo intitulado Demons in the World Today (Demônios no Mundo de Hoje), que apareceu em 1971, a confissão é feita livremente de que a posição tomada no Biblical Demonology (Demonologia Bíblica) “foi assim entendida, pois a Escritura não resolve claramente a questão”.

Há alguns problemas com as declarações de Unger. Primeiro, ele diz que a Bíblia não afirma com clareza que um cristão não pode ser invadido por demônios. Ora, se a Bíblia não diz isso com clareza (o que não é verdade), como pode alguém então afirmar e ensinar sobre aquilo que não está claro na Palavra de Deus? Seria o mesmo que tentar ensinar ou escrever sobre o sexo dos anjos quando a Bíblia nada fala sobre a questão. Se a Bíblia não é clara sobre a possessão de crentes, como pode alguém desenvolver então, biblicamente, uma prática de expulsar demônios de crentes? Simplesmente impossível.

Pode-se perceber também que Unger, que no passado ensinava que crentes não podiam ficar possessos, depois mudou de posição. A mudança veio não pela avaliação bíblica, mas, como ele mesmo conta, através de cartas e relatórios de missionários baseados em experiências dos campos de missões. Mas Unger não está só ao basear a possessão de crentes em experiências e não na Bíblia. Veja a opinião de Bill Subbritzky sobre o assunto: “Pode um cristão ter demônios? A resposta é enfaticamente sim! Se você tem sido informado de que isso não acontece, continue lendo e deixe o Espírito Santo guiá-lo nesta questão. Estou ciente do muito que se tem ensinado a respeito de os cristãos não poderem ter demônios. Contudo, através de minha experiência no ministério há quatorze anos, constatei que tal opinião é totalmente incorreta“. (Bill Subritzky, Demônios Derrotados, 2. ed. (Adhonep, 1992),  p. 41.)

Uma autora no Brasil demonstra ter também opinião semelhante ao declarar: Muitos defendem que, uma vez que o crente é habitação do Espírito (1 Coríntios 6:19), torna-se impossível um demônio habitar onde o Espírito habita (…) o fato de o nosso corpo ter-se tornado o templo do Espírito Santo não quer dizer que jamais poderá ser ocupado por maus espíritos. Não deveria, mas é possível (…) Todos quantos se envolvem no ministério de libertação testemunham a manifestação de demônios em cristãos. (Valnice Milhomens, Batalha Espiritual (Av. Pompéia, 2.110, São Paulo, SP, Palavra da Fé Produções), p. 53.)

Certa líder na área da batalha espiritual segue a mesma linha desses autores e conclui: Se partimos do pressuposto de que os crentes não podem ter demônios ou não podem ficar endemoninhados, corremos o risco de deixar muitos crentes opressos dentro da igreja, vivendo uma vida de grande prisão, mornidão, com uma dificuldade tremenda para crescer. Afinal, o inimigo deseja uma vida cristã medíocre. E aqui é preciso esclarecer a questão da terminologia usada. De acordo com dezenas de estudiosos do grego, daimonozomenai significa “ter demônios” e é melhor traduzido pela palavra “endemoninhado”, nunca possesso, pois no Novo Testamento não vemos o uso do termo (…) Endemoninhado tem um significado lato, indicando o estado da pessoa que tenha um demônio ou até muitos demônios perturbando ou oprimindo sua vida. Quanto ao local onde ele fica, não é o mais importante. Ele pode ficar no corpo, fora do corpo, na alma da pessoa. (Neuza ltioka, Fechando as Brechas (São Paulo, SP, Editora Sepal, 1994), p. 65.)

Dois outros autores norte-americanos, John e Paula Sanford, acrescentam também: Há aqueles que creem que o cristão cheio do Espírito Santo não pode ser ocupado pelo poder demoníaco. Temos descoberto que isto não é um fato histórico, ainda que a teologia diga que o Espírito Santo e os demônios não podem habitar a mesma área. É o que tem acontecido. Temos expulsado demônios de centenas de crentes cheios do Espírito Santo, alguns deles não apenas cheios do Espírito Santo, mas poderosos servos do Senhor! Como isso acontece eu não posso explicar, mas tem sido para nós um fato incontestável de muitos anos de experiência exaustiva. (John & Paula Sanford, Healing The Wounded Spirit – Curando o Espírito Ferido, citado no livro Os Deuses da Umbanda, de Neuza ltioka, São Paulo, ABU Editora, 1987, p. 190. John e Paula Sanford são os grandes responsáveis pela infiltração na Igreja de boa parte das distorções doutrinárias relacionadas com cura interior, batalha espiritual e maldição de família.)

Este é o segundo problema de Unger e é também o problema dos demais autores aqui mencionados: experiência, experiência, experiência. Na última citação, os autores até informam que nem sabem explicar como pode acontecer a expulsão de demônios de crentes, mas continuam levando tal prática adiante.

Terminologia bíblica

Existem muitos preletores de batalha espiritual ensinando que um cristão não pode ser possuído por demônios, mas pode ficar endemoninhado ou ter demônios. Eles tomam o verbo daimonizomai, do grego do Novo Testamento, dizendo que a sua tradução correta é endemoninhado, e não estar possuído por um demônio. (Neuza Itioka, Os Deuses da Umbanda, p. 171. Veja também Demônios Derrotados, de Bill Subritzky, publicado pela Adhonep, p. 41.)

Apesar de todo o barulho sobre o assunto, existe um consenso entre a literatura acadêmica de que a tradução principal para o verbo daimonizomai deve ser mesmo estar possuído de demônios. Vejamos alguns exemplos:

W E. Vine traduz daimonizomai da seguinte forma: Ser possuído de um demônio, agir sob o controle de um demônio. Aqueles que foram assim afligidos expressavam a mente e a consciência de que um demônio ou demônios habitavam neles. Exemplo: Lucas 8:27. O verbo é encontrado principalmente em Mateus e Marcos: Mateus 4:24; 8:16, 28, 33; 9:32; 12:22; 15:22; Marcos 1:32; 5:15, 16, 18; Lucas 8:36 e João 10:21, “aquele que tem demônio.  (W. E.Vine, An Expository Dictionary of Biblical Words (Dicionário Expositivo de Termos Bíblicos) (Nashville, Tennessee, E.U.A., Thomas Nelson Publishers, 1984), p. 283.)

No Léxico Grego, de Bauer, a primeira tradução de daimonizomai é “ser possuído por um demônio”.  (W. Bauer, W. F. Arndt e F. W. Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament  – Léxico Greco-Inglês do Novo Testamento, E.U.A., The University of Chicago Press, 1957, p. 168.) Kittel também coloca como a primeira tradução de daimonizomai “estar possuído por um demônio”. (Gerhard Kittel, Theological Dictionary of the New Testament, vol. 2 – Dicionário Teológico do Novo Testamento, Michigan, E.U.A., W M. B. Eerdmans Publishing Company, 1964, p.19.) Para Thayer, daimonizomai é “estar sob o poder de um demônio”. Thayer acrescenta ainda:

No NT, daimonizómenoi são pessoas afligidas especialmente com doenças graves, físicas ou mentais (tais como paralisia, cegueira, surdez, perda de apetite, epilepsia, melancolia, insanidade etc.), em cujos corpos, na opinião dos judeus, os demônios haviam entrado e mantido possessos por eles, não apenas para afligi-los com enfermidades, mas também para destronar a razão e tomar eles mesmos o seu lugar. (Thayer, Thayeer’s Greek-English Lexicon of the New Testament (Léxico Greco-Inglês do Novo Testamento de Thayer) (Michigan, E.U.A., Zondervan Publishing House, Grand Rapids, 1976), p. 123.)

Apesar das vozes em contrário, pode-se perceber que o termo daimonizomai, de acordo com a erudição bíblica, é traduzido como “estar possuído de demônios”.

Exemplos bíblicos

Várias passagens bíblicas são geralmente citadas como prova de que um cristão pode ter demônios. Uma delas é a que fala de Saul, o primeiro rei de Israel, quando atormentado por um espírito mau (1 Sm 18:10,11 e 19:9,10). Alguns acham que “atormentado por um demônio” é o mesmo que “possuído por um demônio”, o que não é verdade.

Thomas Ice e Robert Dean explicam por que o caso de Saul não foi possessão demoníaca:

1 – É dito que o espírito mau foi enviado da parte de Deus e não de Satanás (16:14).

2 – O espírito mau saía quando Davi tocava sua harpa (16:23) e não se acha nas Escrituras sobre demônio sair ao se tocar uma música. Ao invés disso, os demônios são expulsos no nome do Senhor.

3 – Saul depois arrependeu-se de seu pecado (26:21). O Novo Testamento apresenta a pessoa possuída por demônio como uma vítima que precisa primeiro de libertação, e não de arrependimento.

4 – O texto hebraico diz que o espírito mau vinha sobre Saul (…) Nunca é dito que ele tenha entrado em Saul, como se esperaria, caso se pretendesse transmitir a ideia de possessão demoníaca. (Thomas Ice e Robert Dean, Jr.,A Holy Rebellion (Uma Rebelião Santa) (Eugene,Oregon, E.U.A., Harvest House Publishers, 1990), p. 125.)

Uma irmã em Cristo cita dois exemplos do Novo Testamento para provar que um cristão pode ter demônios:

Alguns argumentam que não há caso de cristãos possuindo demônios no Novo Testamento. Só há casos de judeus. Vejamos:

1- Judas Iscariotes. Recebeu um espírito imundo. Satanás entrou nele. Ele agasalhou maus pensamentos e abriu a porta para a entrada do maligno. Judas era um dos doze. Ele esteve envolvido na obra de pregar o Evangelho, curar enfermos e expulsar demônios.

2 – Ananias e Safira. Eram contados entre os crentes, mas entretiveram pensamentos de mentira e abriram seus corações para Satanás os encher. (Valnice Milhomens, Batalha Espiritual, p. 55.)

É verdade que Judas foi possesso, pois a Bíblia declara que Satanás entrou nele (Lc 22:3). Agora dizer que ele foi um cristão é forçar demais o texto bíblico, e nem foi essa a opinião do Senhor sobre ele. O próprio Jesus disse que Judas era um diabo: “Não vos escolhi eu em número de doze? Contudo um de vós é diabo” (Jo 6:70. Claro que Jesus estava falando no sentido simbólico e não literal. É como se Judas fosse o diabo). Jesus fez distinção entre Judas Iscariotes e os demais discípulos ao dizer-lhes: “Ora, vós estais limpos, mas não todos. Pois ele sabia quem era o traidor. Foi por isso que disse: Nem todos estais limpos” (Jo 13:10, 11). A Bíblia afirma ainda que Judas era ladrão (Jo 12:6). Ensinar que Judas foi cristão seria até uma ofensa aos demais discípulos.

Mesmo que Judas tenha se envolvido na obra de pregar o Evangelho, curar enfermos e expulsar demônios, isto não faria dele um cristão. O Senhor Jesus ensinou que muitos fariam prodígios e profetizariam em seu nome, sem contudo receber sua aprovação. Veja o que o Senhor disse sobre tais falsos profetas: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! porventura não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres? Então lhes direi explicitamente: Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade” (Mt 7:21-23).

Quanto a Ananias e Safira (At 5:1-10), tudo indica que eles eram de fato cristãos. Por outro lado, não existe base bíblica para se afirmar que eles ficaram possessos. O texto diz que foi Ananias quem mentiu e teve que assumir toda a responsabilidade pelo seu pecado. Como explicou alguém:

Satanás, o “pai da mentira” (Jo 8:44), influenciou o coração de Ananias para mentir. Se Ananias tivesse ficado possuído por um demônio ou Satanás, teria sido Satanás dentro dele quem estaria mentindo, e a solução teria sido expulsar Satanás. Ananias seria apenas uma vítima inocente e não o autor do ato que a Bíblia declara ter ele sido (Atos 5:4). Ananias estava no controle e foi responsabilizado pela sua ação, e não Satanás. Esta passagem deve ser melhor entendida como um exemplo de como Satanás usou o coração rebelde de um cristão como base de operação. (Thomas Ice e Robert Dean, Jr., A Holy Rebellion – Uma Rebelião Santa, p. 126.)

Ora, se Ananias e Safira estivessem possessos, por que Pedro não expulsou deles o mau espírito? O que teria acontecido com Pedro? Ele que expulsava demônios e curava enfermos (Mt 10:1-8 e Lc 10:1-17), agora, depois de Pentecostes, depois da descida do Espírito Santo e de ser revestido do poder do alto não é mais capaz de fazê-lo? Com certeza, se Ananias e Safira estivessem possessos, Pedro teria sido usado por Deus para expulsar o mau espírito.

Um reverendo conta que certa vez foi chamado para expulsar o demônio de um pastor que vivia uma vida de desobediência a Deus. Depois de liberto, perguntou o que havia acontecido e se crente fica possesso. Essa foi a resposta: “Expliquei-lhe que pastor fica, crente não; presidente de denominação fica, crente não; gente que dá show em plataforma fica, crente não; crente batizado, selado no Espírito Santo da promessa, habitado pelo Senhor Jesus pode até ficar opresso, pressionado. O diabo pode tentar, induzir, cercar, angustiar, pode tocar na carne, mas possuir a consciência de um ser que foi comprado e lavado pelo sangue de Jesus, nunca! E se você ouvir dizer o contrário, repreenda, em nome de Jesus!” (C Fábio, Batalha Espiritual (Niterói, RJ., Vinde Comunicações, 1994), p. 157-8.)

A Palavra de Deus informa que Paulo recebeu um espinho na carne, um mensageiro de Satanás, para esbofeteá-lo (2ªCo 12:7) e que seus planos podiam ser impedidos por Satanás (1ªTs 2:18). Nem por isso ousará alguém dizer que Paulo em algum momento de sua vida de cristão tenha sido endemoninhado ou possuído por demônios.

Assim, a Bíblia não ensina que um cristão pode ficar possesso ou ser habitado por um demônio. Pode, sim, ser atacado, oprimido de várias maneiras por demônios, mas não possuído por eles ou ficar endemoninhado.

Extraído do livro: EVANGÉLICOS EM CRISE, Paulo Romeiro, Editora Mundo Cristão

http://www.cacp.org.br/pode-um-cristao-ter-demonios/

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