Adoção

Por Rubem Amorese

Há mais de dez anos propus o exame da questão do aborto pela ótica do feto. Imaginei que, sendo eu a vida em gestação, minha mãe me explicava as razões pelas quais eu iria morrer. Entre outras razões, dizia-me que eu era resultado de um monstruoso estupro. Outra razão é que minha mãe achava que tinha direito sobre seu corpo e entendia que eu também era parte do seu corpo; ou que, entre ela e mim, ela preferia sobreviver. E nessa conversa fictícia eu argumentava: “Mãe, mas você poderia me amar, e tudo isso estaria resolvido”.

Recentemente assisti a dois vídeos cujo tema era adoção. No primeiro, várias crianças ganham dos pais um animal de estimação. O comportamento comovido das crianças é muito emocionante.

O segundo mostra um jovem casal que havia tentado ter filhos por meios naturais, mas, não tendo conseguido, partira para a adoção. O vídeo mostra o momento da notícia de que uma menina havia nascido, o comunicado à família e a hora de ir buscá-la.

A emoção que esses vídeos me causam indicam que encontrei o verso da moeda do aborto: a adoção. Se no primeiro caso as razões para a rejeição são tão fortes para os pais, mas, ao mesmo tempo, tão incompreensíveis ao nascituro, no segundo elas são impensáveis. Porque agora já não há direitos, obrigações prévias, pressão social. A adoção acontece em um ambiente de amor; só amor.

A adoção é, a meu ver, uma experiência espiritual. Por trás desse gesto a nós incompreensível de eleição e resgate existe um fenômeno imemorial que chega à nossa alma, no qual o Pai nos encontra, nos ama, nos chama e nos traz para si. O que fizemos para isso? Será que nossa beleza chamou a atenção de Deus? Nossa correção ética? Nossa destreza musical? Será que ele viu que eu sempre atravesso a rua na faixa de pedestres? O que será?

A adoção revela um amor incompreensível. Não encontramos razões para esse gesto. E a palavra amor, no caso, nos parece tão sublime!

Gostaria de voltar a representar aquele feto que – graças! – não foi abortado e imaginar um novo rumo à história.

Nasci e fui para um orfanato. Minha mãe não pôde ficar comigo. Eu via amiguinhos sendo adotados. Eram mais bonitos, mais inteligentes, mais saudáveis, não sei. Os bebês sempre são os mais procurados. Eu já estava com seis anos. Um dia, apareceu um casal que olhava para mim. Eu tentava me esconder, mas eles me achavam com os olhos.

Na visita seguinte eles pediram para falar comigo. Conversamos e brincamos um pouco. As visitas se repetiram. Até que, certo dia, tomando coragem, eu lhes disse o que havia dito para minha mãe, antes de nascer: “Vocês querem me amar?”. E, para minha surpresa, responderam: “Nós já o amamos há muito tempo; temos sonhado com o seu rostinho desde antes de você nascer. E agora o encontramos! Você quer ser nosso?”. Eu respondi: “Quero”.

Entendo que a adoção, entre seres humanos, reproduz, entre nós, o gesto de Deus. A disposição do coração ao risco e ao sacrifício não se explica com palavras (Jo 3.16). E todos os medos são vencidos pelo amor.

• Rubem Amorese é presbítero na Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília. Foi professor na Faculdade Teológica Batista por vinte anos e consultor legislativo no Senado Federal. É autor de, entre outros, Fábrica de Missionários e Ponto Final. Acompanhe seu blog pessoal.

https://www.ultimato.com.br/revista/artigos/380/adocao

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