Disputa de poder: laicismo versus religião

Por Bráulia Ribeiro

Como nos permitimos acreditar na caracterização da tradição judaico-cristã como sendo uma tradição obtusa, ignorante, avessa ao avanço intelectual e científico?

A ideia do Estado laico, limpo da “ignorância” que lhe atribuiria a confissão religiosa, é recente na humanidade. Até pouco tempo atrás, governo e religião eram termos complementares. As sociedades organizavam seus representantes e seu estilo de governo de acordo com sua moral e tradição religiosa. Foi na Revolução Francesa que se inaugurou a era da exclusão da religião da esfera do governo e da pretensão de que sem valores transcendentes, pela mera razão humana, a sociedade poderia gerar uma política mais tolerante e inteligente. O que aconteceu, no entanto, foi um banho de sangue que não parou mais, causando o aparecimento de ideologias seculares que continuaram a inspirar ditadores facínoras e genocídios nos séculos que se seguiram. Tudo debaixo da bandeira da política da “racionalidade” laica. Todos os grandes massacres do século 20 aconteceram sob a égide de governos seculares.

Mas a crítica que fazem à tradição judaico-cristã não tem fundamento? Não são essas religiões responsáveis pelo obscurantismo e ignorância? Não é por isso que o laicismo é necessário? Tenho de argumentar que não, começando pela religião judaica, por exemplo, que, desde o primeiro século da era cristã, época da queda do segundo templo, cultiva a tradição de interpretação das escrituras conhecida como Midrash. A principal característica dessa tradição eram as discussões intensas sobre as minúcias do livro sagrado, sempre procurando a melhor interpretação possível para ser aplicada de maneira prática no momento. Respeito mútuo e paixão nos argumentos são essenciais. Desacordos são esperados e bem-vindos. O Midrash nada mais é do que uma coleção de desacordos documentados. O engajamento intelectual do fiel com as escrituras era visto como uma tradução da fé. 

A tradição cristã também não é menos propensa ao exercício intelectual. Os autores do primeiro, segundo e terceiro séculos deixaram uma riquíssima tradição de debates de alto teor intelectual e teológico. Incluíram um confronto direto com a intelectualidade de sua época, os clássicos gregos, integrando à teologia cristã o que consideraram compatível com a mesma revelação e extirpando o que consideraram estranho. Construíram, por meio de discussões, narrativas teológicas, diálogos e manifestos, os fundamentos da tradição teológica cristã. Deixaram como legado um trabalho de peso intelectual, lucidez e brilhantismo acadêmico. Mais tarde, Santo Agostinho, no século 4º, inaugurou de uma vez por todas a tradição filosófica que conhecemos por ocidental. São Tomás de Aquino é outro peso pesado da filosofia. É impossível falar da produção da mente ocidental sem falar das pedras fundamentais lançadas por Agostinho e Aquino. 

Como foi então que nos permitimos acreditar na caracterização da tradição judaico-cristã como sendo uma tradição obtusa, ignorante, avessa ao avanço intelectual e científico? Vivemos debaixo da pecha da intolerância, porém foram os intelectuais cristãos do século 15 que desenvolveram e aplicaram o conceito de tolerância religiosa e moral na sociedade europeia pós-Reforma. As poucas passagens de conflito entre cristãos e intelectuais que poderíamos apontar como um sinal do “atraso” da igreja são facilmente entendidas se analisados o contexto cultural e o poder político que estavam em jogo. Não foram discórdias intelectuais propriamente ditas, mas discórdias políticas que usaram a discussão teológica como fachada. Em outras palavras, quando o poder político de alguns, até o do clero, ficava em xeque, valia tudo. Respeito, tradição e honestidade intelectual vão “para o espaço”. No lugar fica uma murmuração rancorosa de ódio, um ranger entredentes de afrontas, ultrajes e acusações baratas, os quais substituem o diálogo. Numa disputa de poder a razão cede lugar à paixão. Altares morais são construídos em cima de banalidades e o que é certo ou errado toma o banco de trás, dando a direção do discurso à ganância por poder. 

Ao contrário do que acreditamos, o secularismo não acrescentou tolerância às ideologias de governo, mas, sim, tornou impossível a discussão de qualquer noção de moralidade que não seja aquela professada por quem está no poder. Recuso-me hoje a lamber suas botas e acreditar que, apesar de séculos de evidência de sua insanidade, o discurso secular tem mais capacidade para propor a melhora do Brasil do que a boa e velha moral cristã.

• Bráulia Ribeiro trabalhou como missionária na Amazônia durante trinta anos e no Pacífico por seis anos. Hoje é aluna de teologia na Universidade de Yale, Estados Unidos. Mora em New Haven, CT, com sua família e é autora dos livros Chamado Radical e Tem Alguém Aí Em Cima?, publicados pela Editora Ultimato. www.braulia.com.br.

https://www.ultimato.com.br/revista/artigos/374/disputa-de-poder-laicismo-versus-religiao

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