O favor imerecido

       Um importante aspecto do significado de graça em sentido original no grego (charis) é sua relação com a beleza tanto de gestos e palavras quanto àquilo que dá prazer e provoca júbilo por causa de sua graciosidade presente na beleza das pessoas e de suas ações. “Graça e beleza são conceitos afins; graça e feiura são termos mutuamente excludentes.”

       Na cruz, Jesus foi a manifestação da graça. A cruz foi seu símbolo (1ªCo 1:18). O símbolo é a figura com que se representa um conceito: logo, “a graça (entenda-se como graça o ato salvífico, expiatório) seria o conceito, e a cruz, seu símbolo. Isto estabeleceria que graça e cruz são dois elementos distintos, porque uma, a cruz, só representa a outra, a graça; uma é material, a outra abstrata.”

        A graça da cruz está representada na motivação de Jesus para enfrentar a cruz: os outros. Nessa afirmação concentra-se toda a essência pela qual Jesus achou necessário morrer, que é justamente seu gesto gracioso, voluntário e positivamente definidor em prol da humanidade, cujo fim é a salvação de todo o que crê. A graça de Deus opera a salvação, atuando pela fé no Filho de Deus (Rm 3:28; 5:2). “E seja achado nele, não tendo a minha justiça que vem da lei, mas a que vem pela fé em Cristo, a saber, a justiça que vem de Deus, pela fé” (Fp 3:9).

      Não há transgressão, por maior que seja, ou pecador, por pior que seja, que não possa ser alcançado por essa graça, pois, onde abundou o pecado, que foi exposto pela Lei, superabundou a graça (ver Rm 5:20). Foi por compreender a grandeza da graça que o apóstolo João escreveu que, “se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o Justo” (1ªJo 2:1).

       A graça, no entanto, jamais é ou será um salvo-conduto para a prática do pecado ou para a libertinagem (Gl 5:13); muito pelo contrário, ela convoca-nos à obediência em gratidão ao doador da graça. Quando se ama, faz-se de tudo para agradar; portanto, “o amor de Cristo nos constrange” (2ªCo 5:14) a fazermos coisas por Ele que lhe são agradáveis (1ª Ts 4:1) e glorifiquem seu nome, pois o cumprimento da  Lei é o amor (Rm 13:10; 1ªJo 2:5). Assim sendo, viver pela graça é uma questão de escolha humana. Foi por isso que Armínio escreveu:

A respeito da graça e do livre-arbítrio, isto é o que ensino a respeito das Escrituras e do consenso ortodoxo: o livre-arbítrio é incapaz de iniciar ou aperfeiçoar qualquer bem verdadeiro e espiritual, sem graça. Para que eu possa ser considerado como Pelágio, como usando mentiras com respeito à palavra “graça”, quero dizer, com isto, aquilo que é a graça de Cristo e que diz respeito a regeneração. Portanto, afirmo que esta graça é simples e absolutamente  necessária para o esclarecimento da mente, a devida ordenação dos interesses e sentimentos, e a inclinação da vontade para o que é bom. É esta graça que opera na mente, nos sentimentos e na vontade; que infunde na mente bons pensamentos; inspira bons desejos às ações, e faz com que a vontade coloque em ação bons pensamentos; inspira bons desejos às ações, e faz com que a vontade coloque em ação bons pensamentos e bons desejos. Esta graça vai antes, acompanha e; instiga, auxilia, opera o que queremos, e coopera, para que não queiramos em vão. Ela evita tentações, auxilia e concede socorro em meio às tentações, sustenta o homem contra a carne, o mundo e Satanás, e nesse grande conflito, concede vitória ao ser humano. Ela levanta outra vez os que são vencidos e os que ainda estão caídos, firmando-os e dando a eles nova força, além de fazer com que sejam mais cuidadosos. Esta graça inicia a salvação, promovendo-a, aperfeiçoando-a e consumando-a.

       Paulo, antecipando o problema que pode surgir ao lidar com a graça de Deus de forma irresponsável, faz a pergunta e também a responde: “Que diremos pois? Permaneceremos no pecado, para que a graça seja mais abundante? De modo nenhum! Nós que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele?” (Rm 6:1_2). O autor aos Hebreus complementa ainda: “Para que vos não façais negligentes, mas sejais imitadores dos que, pela fé e paciência, herdam as promessas” (Hb 6:12). Dessa forma, a graça faz que sejamos ainda mais responsáveis diante de Deus no cultivo de uma santidade que leva em conta a gratuidade e a bondade dEle (Rm 2:4).

     Dois extremos podem estar presentes na compreensão da graça: o primeiro é o de que ela possibilita uma liberdade total para pecar a vontade (Rm 6:1_2), pois Cristo perdoa.

Rm 6:1_2

“Que diremos então? Continuaremos pecando para que a graça aumente?

De maneira nenhuma! Nós, os que morremos para o pecado, como podemos continuar vivendo nele?”

      Entretanto, a desobediência fere a imagem de Deus em nós e no nosso próximo e traz consequências. “Será que posso pecar indiscriminadamente?” Isso tem resposta bíblica quando se afirma que maior castigo sobrevirá sobre os que profanarem o sangue do pacto e ultrajarem o Espírito da Graça (Hb 10:29). Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), levando em conta a possível negligência para com a graça de Deus, escreveu a conhecida sentença:

       Graça barata é graça como refugo, perdão malbaratado, consolo malbaratado,[…] é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem a disciplina de uma congregação, é a absolvição sem confissão pessoal […], é graça sem discipulado, […] sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado.

       O outro extremo é o de achar que é impossível receber um presente tão valioso como a salvação sem que para tal seja necessário dar algo em troca; isso pode levar ao legalismo, ao ascetismo ou ao misticismo, tentando alcançar a salvação por obras, tão combatida por Paulo na epístola aos Gálatas (Gl 5:4,6). Essa atitude pode levar ao orgulho espiritual (Ef 2:8,9) e gerar toda sorte de hipocrisias (Mt 23:23). Dessa forma criam-se meios de autossalvação inventando-se regras para aliviar a consciência ao invés de confiar na obra completa de Cristo. (Gl 3:1_5). Por isso, Paulo alertou os colossenses:

Cl 2:20_23

“Já que vocês morreram com Cristo para os princípios elementares deste mundo, por que, como se ainda pertencessem a ele, vocês se submetem a regras:

“Não manuseie!”, “Não prove!”, “Não toque!”?

Todas essas coisas estão destinadas a perecer pelo uso, pois se baseiam em mandamentos e ensinos humanos.

Essas regras têm, de fato, aparência de sabedoria, com sua pretensa religiosidade, falsa humildade e severidade com o corpo, mas não têm valor algum para refrear os impulsos da carne.”

       Os agraciados pela graça são os que compreendem que somos devedores para com Deus e para com os irmãos (Rm 13:8) e, por isso, amam como Cristo amou (Jo 13:35). Os que vivem sob a liberdade da graça desenvolvem uma santidade que reflete a beleza de Cristo no homem interior, que extravasa nas mais diferentes esferas da vida humana e em total confiança em Deus para tudo. Essa mesma graça permite estarmos mortos para o pecado (Rm 6:11,13) e vivendo a Lei de Cristo para alcançar os que vivem sem Ele (1ªCo 9:21).

      Assim, nossa única saída é confiar inteiramente em Cristo, que nos perdoa, aceita e ama do jeito que somos. Esse amor, porém, constrange-me a obedecer-lhe. O contrário disso seria a negação da eficácia da obra de Cristo. A religião diz o que devo fazer (obedecer); Jesus diz o que Ele já fez por mim (confiar).

A Obra da Salvação – Jesus Cristo é o caminho, a verdade e a vida – Livro de Apoio das Lições Bíblicas do 4ºT 2017 Adulto CPAD

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