A Reforma Protestante e a educação

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O humanismo cristão, corrente de pensamento que florescera no século XV, teve em Erasmo de Roterdão (1466/69-1536) um de seus maiores expoentes. Ele fez duras críticas à educação postulada pela Igreja Católica em sua época. Para ele, o modelo escolar era estático, formado pela memorização e repetição de conceitos sendo altamente disciplinar e controlado pelos princípios católicos. Obviamente, essa educação impedia o desenvolvimento da capacidade crítica e a criatividade dos educandos. Essa realidade também se faz presente, segundo Erasmo, nas escolas sob influência do movimento reformista.

Os “protestantes” (assim designados os que aderiam ao movimento liderado por Martinho Lutero) não ficam estagnados quanto à questão educativa e são fundamentais para a formação da pedagogia que encontramos até hoje. A questão protestante estava diretamente ligada à educação. Em decorrência dos princípios da Reforma, há uma ênfase na obrigação à leitura, compreensão e a interpretação da Bíblia. Assim, era fundamental oferecer instrução às pessoas. Com essa ideia tomando espaço, começa a surgir a necessidade de uma educação geral e mais abrangente, já que todos deveriam ler as Sagradas Escrituras, sem distinção e discriminação, para poderem buscar a Deus em suas palavras.

Lutero não somente atinge a Igreja Católica com suas críticas, mas influencia a educação quando produz uma reestruturação no sistema de ensino alemão, inaugurando uma escola moderna. A ideia da escola pública e para todos, organizada em três grandes ciclos (fundamental, médio e superior) e voltada para o saber útil nasce do projeto educacional de Lutero (FERRARI, 2005, p. 30-32).

A primeira universidade protestante, a Phillipps-Universität Marburg, fundada em 1º de julho de 1527, foi criada pelo Conde Philipp (Conde de Hessen) por recomendação de Martinho Lutero. A expectativa era criar um espaço para o aperfeiçoamento dos eruditos e religiosos, pregadores e leigos. Os primeiros cursos a serem oferecidos foram Teologia, Direito, Medicina e Filosofia (MAIA, 2003, p. 7). Outras instituições de ensino surgiram na Europa durante o século XVI. Em destaque temos a Academia de Genebra, criada em 1559 por Calvino. Esta Academia tornou-se um importante centro de educação e difusão das ideias reformistas. Com a mesma intenção, John Knox lançou o desafio para que se fundasse uma escola em cada cidade da Escócia. Em 1689 foi criada a Sociedade para a Promoção do Conhecimento Cristão.

A educação era de fundamental importância dentro da concepção de mundo de Martinho Lutero. Em uma de suas cartas aos prefeitos e conselheiros alemães ele escreve:

É realmente um pecado e uma vergonha que tenhamos de ser estimulados e incitados ao dever de educar nossas crianças e de considerar seus interesses mais sublimes, ao passo que a própria natureza dever-nos-ia impelir a isso e o exemplo dos brutos nos fornece variada instrução. Não há animal irracional que não cuide e instrua seu filhote no que este deve saber, exceção feita à avestruz, de quem diz Deus: “Ela (a fêmea avestruz) põe seus ovos na terra e os aquece na areia; e é dura para com seus filhotes, como se não fossem dela”. E de que adiantaria se possuíssemos e realizássemos tudo o mais, e nos tornássemos santos perfeitos, se negligenciássemos aquilo por que essencialmente vivemos, a saber, cuidar dos jovens? Em minha opinião não há nenhuma outra ofensa visível que, aos olhos de Deus, seja um fardo tão pesado para o mundo e mereça castigo tão duro quanto a negligência na educação das crianças (LUTERO apud MAYER, 1976, p. 250-251).

Lutero faz duras críticas aos pais por negligenciarem o dever sagrado de educar os filhos. Seja pela falta de piedade e honestidade, seja pela falta de formação dos próprios pais, os filhos eram privados de se desenvolverem intelectual e espiritualmente. Outra crítica apresentada por Lutero referia-se ao pouco tempo que os pais dedicavam à educação dos filhos. As escolas surgem como uma importante alternativa para essa realidade e, com o poder aquisitivo da nascente burguesia, era possível transferir muitas das tarefas educacionais aos professores.

O Humanismo e o Renascimento aceleraram a produção literária e promoveram as transformações na época. Valendo-se disso, Lutero, ao romper com a Igreja Católica e ser acolhido pelos príncipes locais, traduz a Bíblia para o alemão. Todo distanciamento imposto pelo catolicismo acaba, e o cidadão a partir da tradução das Escrituras, passa a ter viabilidade de interpretação individual de sua fé.

A Bíblia torna-se o livro mais lido da Europa no século XVII. Na Inglaterra, uma erupção religiosa aparece nos campos sociais, incluindo a preocupação com a educação. A possibilidade de discussão leva as pessoas a questionar e refletir sobre as novas possibilidades de respostas aos dramas da existência. Isso alimentará o discurso a respeito da igualdade, da liberdade e de futuras revoluções. Paralelamente, o contexto social estava se transformando e as mudanças iam muito além da questão religiosa.

A doutrina calvinista vai ao encontro dos interesses da burguesia quando diz que o trabalho enobrece o homem e garante que a acumulação de capital não é pecado, mas, sim, uma recompensa divina. Por esse motivo, ela teve grande influência na Europa, onde a burguesia estava em franco desenvolvimento, e ao chegar à Inglaterra transforma-se em puritanismo. O puritanismo constituir-se-á na maior manifestação do protestantismo na Inglaterra, contrastando com a chamada “população anglicana”. O anglicanismo possui o mesmo culto católico, só que dentro dessa religião o poder é transferido ao rei, caracterizando-o como uma religião da nobreza.

A expressão subjetividade implica sobretudo quatro conotações: a) individualismo: no mundo moderno a peculiaridade infinitamente particular pode fazer valer as suas pretensões; b) direito à crítica: o princípio do mundo moderno exige que o que deve ser reconhecido por cada um se lhe apresente como algo legítimo; c) autonomia do agir: é característico dos tempos modernos o fato de nos querermos
responsabilizar pelo que fazemos; d) filosofia idealista: Hegel considera ser tarefa dos tempos modernos que a filosofia aprenda a ideia que sabe de si própria (HABERMAS, 1990, p. 27 e 28).

A partir da Reforma Protestante, a religião atingiu sua interioridade absoluta. Segundo Habermas (1990, p. 44), “ela separou-se da consciência mundana na época do iluminismo”. A preocupação com o conhecimento além daquilo determinado por Deus torna-se possível. A intelecção superior representa, em muitas situações, algo inatingível. Matéria e espírito tendem a se afastar, novamente, a exemplo dos pressupostos platônicos. Essas ideias acabam por motivar grupos reformados ao despertamento missionário do século XVIII. Os movimentos de colonização envolvendo países predominantemente protestantes apresentarão em seu bojo uma retomada da vivência espiritual marcada pela expectativa de tornarem conhecidos os propósitos redentores de Deus.

Um exemplo típico da influência do pensamento da Reforma e da educação encontramos nas origens da Igreja Metodista. O movimento denominado “metodismo” surgiu dentro do contexto universitário inglês, em especial em Oxford. Com sua ênfase na universalidade da educação, na racionalização, no desenvolvimento científico, nas revoluções políticas e econômicas na Europa do século XVIII, as ideias iluministas influenciam e são influenciadas pelo pensamento da época. Entre as ênfases no movimento metodista temos, com destaque, a preocupação com a educação. Desde a atenção às crianças, filhos dos trabalhadores das minas, até as discussões filosóficas e teológicas no ambiente universitário, os “entusiastas da fé” (como também eram chamados os metodistas) faziam-se presentes. “Esse contexto universitário e o longo tempo durante o qual Wesley permaneceu associado a ele nos revelam alguns traços do Iluminismo que caracteriza o século XVIII”
(NASCIMENTO, 2003, p. 90).

Os estudos referentes às atividades missionárias protestantes no Brasil a partir da segunda metade do século XIX apontam para a presença da escola como parte do projeto de implantação das denominações, com destaque para os luteranos, presbiterianos, metodistas e batistas. Com relação às escolas protestantes, as razões para sua instalação não são filantrópicas, mas doutrinais: o analfabetismo era empecilho ao aprendizado da doutrina protestante, calcada na leitura da Bíblia, de livros e revistas denominacionais. O canto dos hinos igualmente requeria pessoas alfabetizadas. Tais escolas floresceram bastante em áreas rurais, onde o controle da religião dominante era menor (DREHER, 2003, p. 25).

Nas crescentes áreas urbanas brasileiras no final do segundo Império, o crescimento das escolas protestantes e, consequentemente, o projeto educacional reformado deram-se em razão da discriminação que os filhos dos “protestantes” sofriam na escola pública. Sofrendo forte influência das ideias pragmáticas e liberais norte-americanas, o projeto educacional protestante, vinculado ao projeto missionário, serviu como combustível para a nascente classe burguesa nacional.

Considerações finais

Nesta reflexão procuramos situar o papel, o lugar e a importância da educação no momento em que a Europa vive o movimento denominado Reforma Protestante. A partir de alguns destaques, refletimos sobre esse momento altamente significativo para a história do pensamento cristão.

Para finalizar este artigo, retomamos alguns aspectos que julgamos essenciais para nossa reflexão.

A Reforma torna-se efetiva a partir de um tratado – a Paz de Augsburgo. Trata-se de uma iniciativa política com o objetivo de estabelecer padrões de convivência garantindo a dignidade humana. Direitos são reconhecidos e a possibilidade de escolha caracteriza-se como marca daquele período. A liberdade representará uma conquista capaz de mudar os rumos da história. O poder é concedido a outros principados e a relação Estado-Igreja tende a se constituir em novos contornos. A educação para todos torna-se uma das principais bandeiras, tanto pelos segmentos protestantes como pelos católicos.

Digna de nota é a atenção dada à educação numa perspectiva missionária. É necessário conhecer a Deus. A fé será vivida a partir de uma experiência em que conhecer e crer se confundem numa só imagem. Uma nova compreensão social, política e econômica se configura nessa sociedade aprendente.

O objetivo da educação numa comunidade democrática é habilitar os indivíduos a buscá-la progressiva e continuamente, levando-os a um constante desenvolvimento. Ressalta-se a importância do indivíduo educado, consciente e interessado, apto para desenvolver suas responsabilidades sociais (VALENTIN, 2008, p. 21).

Educar o ser humano, criado à imagem de Deus, para o exercício consciente e crítico da cidadania constitui o principal objetivo das escolas confessionais. As pessoas deviam se preparar para a vida, contribuindo para o desenvolvimento do homem e da sociedade, por meio da educação, com a articulação dinâmica das atividades científicas, culturais, esportivas, sociais, éticas e espirituais. A necessidade de redenção desde épocas passadas nos faz lembrar a ideia familiar tanto da mística judaica como protestante da responsabilidade das pessoas pelos propósitos de um Deus que, desde o ato da criação, renunciou à sua onipotência em favor da liberdade do homem criando-o à sua imagem e semelhança (HABERMAS, 1990, p. 25).

Próximos de comemorarmos 500 anos de Reforma Protestante, indagamos pelos propósitos postulados pelos grandes reformadores. Em especial, no que concerne à educação, ao observarmos a atual realidade social, política e econômica da sociedade ocidental, cremos que há muito a ser pensado. Os pressupostos educacionais, tanto protestantes como católicos, têm contribuído para a construção de uma sociedade baseada nos valores do Reino de Deus, explicitamente apresentados e vividos por Jesus Cristo? A partir das informações e reflexões apresentadas, observamos a existência de uma longa caminhada a ser feita no intuito de concretizar os ideais da Reforma na perspectiva do Evangelho.

Ismael Forte Valentin
Doutor em Educação, mestre em Ciências da Religião, graduado em Pedagogia, Filosofia e Teologia.

Professor na Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) e na Faculdade de Conchas (Facon).

Coordenador do Grupo de Área de Ciências da Religião da Faculdade de Ciências Humanas (Unimep). Atua nas áreas de Teologia prática, Educação protestante, Filosofia, História e Pedagogia.

E-mail: ifvalent@unimep.br

http://www.ipbg.org.br/phocadownload/mensagens/slides/a_biblia_e_a_reforma_protestante_complemento.pdf

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