Fé, cidadania e política: só a pauta moral?

Por Délio Porto | Resenha

Onde foi que aprendi a cultivar o desinteresse pelos temas da justiça e do direito?

Desde quando aquilo a que chamo de fé cristã não se interessa pela cidadania?

Quem me fez pensar que a causa pública se reduz às questões morais?

Será que evangélico na política não passa de tapeação?

Algo que era impensável há cinquenta anos virou realidade – os evangélicos cresceram e tornaram-se uma força política. Hoje formam grupos ativos, muitos dos quais, a bem da verdade, com uma noção apequenada sobre o tipo de contribuição a dar na arena pública. O recente livro do Carlos Alberto Bezerra Júnior, Fé cidadã: quando a espiritualidade e a política se encontram (Editora Mundo Cristão), auxilia-nos no entendimento dessa questão. Bezerra recorda as raízes do pensamento evangélico sobre a política e a cidadania. As mesmas raízes que, ao lançarem brotos produtivos, têm o poder de renovar o modo de ser político e evangélico.

O texto curto e direto do livro nos conduz pelo emaranhado de ideias bíblicas e conceitos teóricos de forma simples e prazerosa. Nove pessoas de peso, reconhecidas em suas áreas, dentro e fora do arraial evangélico, endossam o livro. Carlos conseguiu a proeza de que intelectuais, pastores e ativistas sociais dessem atenção ao seu texto, sendo um deles ninguém menos que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

A obra não se dedica aos aspectos conceituais. Repleta de exemplos práticos, vindos da experiência de pessoas envolvidas em projetos sociais e em atividades políticas, espelha a própria jornada de vida do autor, marcada por muito ativismo. Bezerra é médico, pastor, deputado estadual e ativista social. É de sua autoria a lei paulista 14.946/2013 contra o trabalho escravo, reconhecida pela ONU como exemplo de avanço nessa área. Possui uma carreira extensa como político e várias experiências em eventos internacionais. Sua bagagem o habilita a discorrer sobre a vocação do cristão na sociedade e sobre o cenário político atual, permeando tudo com os aspectos bíblicos.

Participação política e cidadania são assuntos que inflamam as pessoas nos dias atuais. As perguntas lançadas no início do texto são provocações que fiz a mim mesmo a partir da leitura do livro – lido enquanto se desenrolava a tragédia com a barragem de rejeito da Mina do Feijão, em Brumadinho. Um acontecimento terrível que me fez pensar se ainda é possível nos libertamos da confiança quase inquestionável nos benefícios dos megaempreendimentos e nos rumos da nossa sociedade. Somos uma geração de brasileiros polarizada entre o atraso e a modernidade, acostumados a maximizar a confiança na tecnologia e a minimizar os impactos que ela produz. Desenvolvimento, impactos social e ambiental, pobreza, participação cidadã e influência política são temas que desafiam a nação e se relacionam com o escopo do livro de Carlos Bezerra.

Sem cair nas rivalidades entre esquerda e direita, o autor compartilha do desassossego de muitos de nós de que a participação política dos evangélicos não está produzindo debates amplos sobre os problemas nacionais. Ele alerta para o fato de a bancada evangélica ser monotemática e seletiva. Se por um lado ela é rápida e eficaz quando se trata da pauta moral, por outro, não mostra atenção sobre as gravíssimas questões sociais, como a dificuldade de acesso à moradia, a precariedade dos hospitais e das escolas, a cultura de violência, a superlotação dos presídios, o acesso à terra e a questão indígena. O político evangélico padrão desconsidera que a sociedade brasileira possui pecados estruturais e sistêmicos, ou desmerece a demanda por reformas profundas que possam ser implementadas a partir da política. Tal retrato não é só dos políticos, mas também dos eleitores. Mesmo sendo anterior às últimas eleições no Brasil, o livro elucida o comportamento de grande parte do eleitorado evangélico, que gravitou em torno da tal pauta única – a pauta moral – embarcando na movimentação de líderes midiáticos, minimizando o debate de outros temas relevantes, embora não tenham faltado vozes alertando sobre isso.

Suponho que diante do atual panorama da tempestuosa política nacional, sob o bombardeio de firulas que são noticiadas a cada dia, o pouco que nos resta de pendor político oscila entre o assombro e o desânimo. E é aí que mora o perigo. Uma participação cidadã fraca tem origem na baixa expectativa de ser sal da terra justamente quando a vida deveria ser um rastro de sal no meio da paisagem social. Os complexos desafios do mundo político geram sentimentos de impotência e despropósito em muitos – por mais que se use o sal, a podridão insiste em seguir seu curso. Carlos Bezerra não dá brecha para este tipo de indolência. Não fraqueja. Lembra-nos que Jesus não procurou o caminho fácil da amizade com os poderosos e suas aparições públicas eram, frequentemente, próximas do povo empobrecido. Relembra vários aspectos da preocupação com a injustiça social retratados na Bíblia, bem como os princípios bíblicos que sustentam a defesa da dignidade da vida humana e da liberdade. Trata também sobre o modo como os cristãos podem incluir hoje o tema da justiça no testemunho do evangelho do Reino. Dedica espaço a uma boa explanação sobre os direitos humanos e sua fundamentação na teologia bíblica, cuja redescoberta motivou a ação política de muitos cristãos em tempos recentes.

O tema da desigualdade social perpassa os vários ângulos da abordagem do autor. Diante do mar de pessoas que vivem em situação de extrema pobreza, a omissão e o silêncio serão desastrosos para o Brasil, alerta. E os cristãos podem agir. Cada igreja pode produzir alguma diferença na comunidade à sua volta. Sem dar atenção ao próximo e ao sofrimento, a teologia torna-se um discurso vazio. O autor recorda o quão impactante foi o testemunho de vida comunitária dos primeiros cristãos e convida o leitor a sonhar com um novo modo de testemunhar o evangelho, mostrando como homens e mulheres escolheram viver de forma atuante na sociedade. São modelos nos quais os evangélicos dos dias atuais precisam se espelhar, sem cair, é claro, na simples imitação.

Nos capítulos finais, Bezerra expõe motivos para sonharmos. Com vários exemplos retirados da Bíblia, do trabalho de organizações e de iniciativas individuais ele nos expõe ao contágio. Espera que o leitor faça o dever de casa e empreenda algo, envolvendo o seu grupo ou a sua igreja. Mas o que pode ser feito? Por onde começar? Geralmente, essa decisão se fundamenta num olhar para dentro do nosso grupo, quando listamos nossos talentos e recursos e decidimos que estamos aptos a fazer uma determinada ação. Neste ponto Bezerra nos dá uma advertência: “(…) não somos nós que escolhemos a demanda, é a demanda que nos escolhe”.

É bom que se diga que Carlos Bezerra Júnior não faz de seu livro um libelo ideológico. Talvez alguém se decepcione com o fato dele ser um socialdemocrata, ou ser tão preocupado com a justiça social, ou por não pensar que o mercado, por sua própria natureza, será capaz de resolver os problemas sociais do Brasil. Se o que vemos na prática é a omissão, ou se a causa dos poderosos vem se sobrepondo à dos miseráveis, as intervenções políticas e as iniciativas no campo da cidadania são necessárias. E para uma ação de qualidade, os evangélicos necessitam da teologia bíblica, dos modelos de ação bem-sucedidos, da visão compassiva, da aspiração pelo testemunho integral e do entendimento sobre as potencialidades da ação política. Nas páginas deste livro o leitor encontrará um pouco de cada um destes aspectos.

• Délio Porto é presbiteriano, engenheiro civil e professor universitário.

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