Contentamento na Bíblia

Por William Lane

Em uma de suas expressões de gratidão pelo apoio da igreja ao seu ministério, o apóstolo Paulo diz aos filipenses que aprendeu a viver “contente em toda e qualquer situação”(Fp 4:11)  – ser humilhado e ser honrado, ter fartura e passar fome(Fp 4:12). Normalmente associamos a atitude de Paulo à felicidade e à alegria, pois ele, de fato, menciona repetidamente sua alegria e gratidão com o apoio e o companheirismo da igreja de Filipos ao seu ministério. Imaginamos um Paulo abnegado, que estava sempre alegre e feliz, e cujas circunstâncias não o afetavam.

A expressão grega (autarkes, derivada de arkeo, arketos) usada por Paulo, no entanto, denota autossuficiência, satisfação, e pode ser empregada com outros sentidos. As versões modernas da Bíblia, por exemplo, divergem na própria tradução de Filipenses 4.11. A Nova Versão Internacional e a Bíblia do Peregrino ressaltam a adaptação às circunstâncias (“aprendi a adaptar-me a toda e qualquer circunstância”, “aprendi a adaptar-me às necessidades”), enquanto a Almeida Século 21 e a Nova Versão Transformadora destacam a satisfação (“estar satisfeito em todas as circunstâncias em que me encontre”, “aprendi a ficar satisfeito com o que eu tenho”).

Alguns sugerem que Paulo faz alusão ao conceito dos antigos filósofos estoicos que consideravam o contentamento como a essência de todas as virtudes. Os estoicos defendiam o autocontrole e a habilidade de não se deixar levar pelas emoções e circunstâncias. Eles se orgulhavam de “tornarem-se independentes das coisas e dependerem apenas de si mesmos ou de se submeterem à sorte determinada pelos deuses”¹. Ainda que Paulo estivesse expressando alguma forma de contentamento, o que diferencia claramente a visão dele é o reconhecimento de que sua fonte de contentamento não era a própria independência e autossuficiência, mas sua total confiança “naquele que me fortalece”(Fp 4:13).

Assim, no Novo Testamento, o contentamento não é entendido como um controle absoluto das emoções diante das mais adversas circunstâncias, mas como a satisfação de ter o suficiente para viver. Também não significa exclusivamente alegria e júbilo, mas é, por outro lado, fonte de alegria – se a pessoa é capaz de atravessar momentos difíceis com satisfação e confiança no Deus que a sustenta e guarda, isso certamente redundará em regozijo. O contentamento envolve, então, aceitar as circunstâncias e descansar na provisão de Deus.

Mesmo a ideia de suficiência não tem um caráter individualista e narcisista de satisfação pessoal, ou um sentimento de realização por alcançar objetivos e ideais pessoais, como frequentemente se vê na cultura moderna. Há uma dimensão de generosidade. Quando Paulo exorta os coríntios a contribuírem com a assistência aos santos que passavam necessidade na Judeia, ele declara que “Deus é poderoso para fazer que lhes seja acrescentada toda a graça, para que em todas as coisas, em todo o tempo, tendo tudo o que é necessário (autarkes), vocês transbordem em toda boa obra”(2ªCo 9:8). O fato de terem “tudo que é necessário” é uma oportunidade para contribuir generosamente com os que mais precisam.

O contentamento também nos livra da avareza e da inquietante ambição por querer possuir mais e mais. É muito importante ter satisfação para não transformarmos a fé em um meio de ganhar dinheiro. Alguns pensam que a religião ou o ministério pastoral são oportunidades de aumentar o seu patrimônio. Infelizmente, há quem realmente faça da fé um negócio. Isso sempre foi um problema, logo, Paulo adverte Timóteo (1ªTm 6:3_10), dizendo que “de fato, a piedade com contentamento é grande fonte de lucro, […] por isso, tendo o que comer e com que vestir-nos, estejamos com isso satisfeitos” (1ªTm 6:6_8). Verlyn Verbrugge afirma que a marca do contentamento não é mais a autonomia e a autossuficiência, mas a “liberdade para ofertar a outros”².

O contentamento nos livra da escravidão de nunca estar satisfeitos e em paz com nossa situação, seja com respeito aos bens materiais, ao salário, à aparência física, ou mesmo à nossa espiritualidade. Ter contentamento é estar livre disso e desfrutar o dom da vida.

No Antigo Testamento

No Antigo Testamento não há um termo hebraico único para designar contentamento. Essa ideia é, em geral, derivada de diversos vocábulos, entre eles a palavra saba‘, que denota saciedade, fartura, e está associada a duas ideias principais: 1) a satisfação de quem comeu e está saciado, tanto literal (Ex 16:8) quanto metaforicamente, envolvendo satisfação com o cuidado divino (Sl 107:9); e 2) prazer e disposição de realizar algo, normalmente a pedido de outra pessoa (Ex 2.21; Jz 17.11). Porém, embora tenha um sentido bastante positivo, no Antigo Testamento há constante advertência contra o perigo de a satisfação, particularmente a física, levar o povo a se esquecer do Senhor (Dt 6.10-12). Então, de certo modo, o contentamento não está completo quando derivado apenas das condições físicas e materiais. Ele se completa com o reconhecimento de que o Senhor é a fonte de nossa vida e sustento, seja na abundância ou na escassez (Pv 30:8_9).

Outro termo hebraico frequentemente empregado para descrever o contentamento vem da raiz yatab, que significa ser bom, estar bem, estar contente. O substantivo tôb, normalmente traduzido como “bom”, é usado em Gênesis 1 para descrever a reação de Deus ao que ele criou: “Viu que era bom”(Gn 1.10, 12, 18, 21, 25). e “tudo era muito bom” Gn 1:31). Essas expressões refletem não só a qualidade do que Deus criou, mas também sua satisfação com o que criou.

Notas
Contentamento na Bíblia
1. VERBRUGGE, Verlyn D. Novo dicionário internacional de teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2018. p. 87.
2. VERBRUGGE, 2018. p. 88

William Lane é pastor presbiteriano, doutor em Antigo Testamento e professor da Faculdade Teológica Sul-Americana, em Londrina, PR.

https://www.ultimato.com.br/revista/artigos/375/contentamento-na-biblia