O suicídio ecológico contemporâneo

René Padilla

       Deus deu ao ser humano a vocação de exercer domínio sobre a terra. Dessa forma, o Criador do universo quis compartilhar sua soberania com criaturas que são sua imagem e semelhança: feitas do pó da terra, mas chamadas a administrar a terra como mordomos da criação de Deus, em liberdade e obediência.

       A terrível crise ecológica que hoje afeta nosso planeta mostra até que ponto a humanidade abusou da autoridade que Deus lhe delegou sobre a criação. Em 1931, o filósofo inglês Bertrand Russell escreveu: “Para o homem moderno, o meio ambiente físico é meramente matéria-prima, uma oportunidade para a manipulação. É possível que Deus tenha feito o mundo, mas isso não é razão para nos abstermos de restaurá-lo”. Desde então, as consequências negativas do uso irresponsável dos recursos naturais aumentou de tal maneira que não é exagero afirmar que estamos avançando rumo a um suicídio global.

       Uma manifestação da gravidade do atual problema ecológico é a mudança climática que o mundo todo está vivenciando. Segundo o relatório AR4, publicado em 29 de junho de 2007 pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês), estabelecido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio-ambiente (PNUMA) e pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), “O aquecimento do sistema climático é inequívoco, como é agora evidente pelas observações do aumento das temperaturas médias do ar e do oceano, de derretimento generalizado de neve e gelo, e de uma elevação do nível do mar”. Os dez anos mais quentes registrados desde 1990 ocorreram a partir de 1997, e calcula-se que, no mundo todo, aproximadamente 150 mil pessoas morrem a cada ano por causa do impacto do aquecimento climático na saúde humana. Segundo o Greenpeace, a extensão mundial de terras afetadas pela seca no mundo duplicou entre 1970 e o início da década de 2000.

       Os relatórios especializados explicam cientificamente as notícias que escutamos com frequência ou aquilo que vivenciamos por causa dos desastres naturais causados pelo aquecimento climático. Tempestades, inundações e secas terríveis, ondas intensas de calor e frio são comuns no mundo todo. Os efeitos da mudança climática nos últimos anos foram devastadores.

       Segundo o relatório do IPCC, esse aquecimento provavelmente é causado pela produção de gases como o dióxido de carbono, produzidos por certas atividades humanas. Embora os países ricos sejam especialmente responsáveis por essa produção, a situação se complica mais com o aumento da emissão de gases nos países em desenvolvimento, como China, Índia e Brasil, onde a emissão duplicou nos últimos vinte anos.

       Em última instância, o devastador fenômeno da mudança climática resulta do que o sociólogo Leslie Sklair denomina “a cultura-ideologia do consumismo”, que está no centro do atual sistema econômico global e de sua obsessão com o crescimento econômico. A ditadura do consumismo estabelece que o sentido da vida depende da posse pessoal de produtos tecnológicos que supostamente melhoram o nível de vida. O duplo desafio que essa sociedade consumista apresenta aos cristãos é, em primeiro lugar, dar ouvido à palavra de Jesus: “A vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui” (Lc 12.15). Em segundo lugar, recuperar a prática da mordomia da criação estabelecida por Deus no princípio.

Traduzido por Wagner Guimarães

• C. René Padilla escreve regularmente na coluna Missão integral.

A.W.Tozer

“Há no cosmos, vivo e que respira, algo misterioso, maravilhoso e tremendo, acima da compreensão de todas as mentes. O crente não alega entender tudo. Ele cai de joelhos e sussurra: Deus!”

 

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Uma resposta para O suicídio ecológico contemporâneo

  1. Consequências irreparáveis da tragédia em Mariana

    Mariana

    Faz dois anos que a barragem de Fundão se rompeu em Mariana, MG. Os prejuízos foram incalculáveis. A própria Renova, fundação criada para executar as ações de reparação e compensação, reconhece que esta foi a maior tragédia ambiental da história do país e a maior do mundo na mineração.

    Desde o acidente, a empresa Samarco continua sem operar, com milhares de trabalhadores desempregados e municípios que dependiam das atividades da empresa estão com sérios problemas financeiros. O rio Doce e seus afluentes continuam contaminados, porém, a lama não é mais tão visível. A cor da água parece normal, mas o fundo de lama alaranjada revela a tragédia ambiental. Apesar de muitas ações reparatórias feitas pela empresa e de muita propaganda nas redes sociais, aquilo que é irreparável continua como ferida aberta na vida das pessoas diretamente atingidas.

    As famílias das vítimas fatais foram “compensadas” com valores em dinheiro. Os que perderam suas casas receberam um pagamento pela perda do imóvel. Mas quanto custa a história de vida de pessoas de vilas rurais, que tinham nas galinhas, no pé de manga e na horta a sua estabilidade emocional, paz de espírito e segurança? Histórias como a de uma gestante que perdeu o bebê após ser arrastada pela lama, por um quilômetro. Ela luta para que esse aborto seja considerado a vigésima vítima fatal da tragédia, pois seu “caso” não está incluído no pacote de compensações às vítimas*1.

    As ruínas das cidades destruídas não podem ser demolidas ou reconstruídas pois são a prova do crime. Pessoas da roça, transferidas para Mariana, aguardam a restauração de suas casas e vilas prometida para 2019. Na nova cidade têm sido hostilizadas e consideradas culpadas pelo desemprego*2. São chamadas de “pé-de-lama” que recebem o “bolsa lama”. Não é à toa que muitos delas estão em depressão, sem segurança nas expectativas e promessas*3.

    A pesca ainda está proibida em partes da bacia do rio Doce e na sua foz deixando pescadores dependentes de um cartão de benefício emergencial muito aquém da renda média obtida com a atividade. Agora terão que criar peixes de menor valor comercial em tanques para obterem renda. Para um bom comedor de moqueca como eu, a troca de peixes do mar como badejo, pescadinha ou robalo por tilápia não faz o menor sentido, e isso se reflete no valor que as diferentes espécies de peixe têm no mercado.

    A recuperação ambiental ainda está muito longe de ser realidade. Um relatório do IBAMA*4 mostra que a maior parte dos danos ambientais ainda não foi reparada e que as ações que já foram feitas ainda estão em fase inicial ou insuficiente. Qualquer ação de reparação de danos deve ser pensada a longo prazo e especialmente no sentido de aumentar a capacidade de auto recuperação da natureza.

    A Renova espera cadastrar até o próximo ano aproximadamente 25 mil pessoas como afetadas pela tragédia. Apesar da imensidão de danos e prejuízos*5, qual a posição que os órgãos fiscalizadores e as empresas mineradoras têm assumido para impedir que novas tragédias como essa ocorram? Existem centenas de outras barragens de rejeitos em todas as áreas de mineração do país. O que impede novas tragédias como essa? Estamos seguros? Certamente não.

    Porém, o mais urgente ainda é cuidar das pessoas. Os pobres que não podem pagar advogados estão à mercê do que os dirigentes das empresas envolvidas acham que é justo. E quem poderá defendê-los e zelar pelos seus direitos? Como as igrejas cristãs têm se posicionado a respeito dessa tragédia? Com que atitudes? Não basta tocar sinos em protesto ou homenagens póstumas no aniversário da tragédia. A igreja de Cristo deve contribuir, especialmente buscando as pessoas que são vítimas e oferecendo aquilo que possa dividir. Além disso, cada pessoa, especialmente os seguidores de Jesus devem repensar o modo como vivem nesse mundo do consumo. Siga os passos do Mestre. Lembre-se de como Jesus vivia em relação aos bens que ele poderia ter tido enquanto esteve entre nós. Jesus fez a escolha certa de viver com o que tinha. E se não tivesse nada, tudo bem.

    Tragédias como a de Mariana têm como pano de fundo uma sociedade de consumo baseada em “quanto mais, melhor”. O uso de recursos naturais como os minérios de forma tão intensa e sem ações efetivas de zelo pela natureza e pelas pessoas leva a tragédias, mas é justificado pela satisfação da demanda do mercado e pela geração de “riquezas” para o país. A morte de pessoas, a destruição da natureza e o desrespeito pela criação divina são danos colaterais toleráveis para o mercado. São parte do risco aceitável.

    Não podemos nos conformar com esse mundo insustentável. Precisamos renovar o nosso entendimento sobre as consequências do nosso estilo de vida consumista (Rm 12:2). Não podemos tolerar tragédias cotidianas ou eventuais como um risco aceitável para obtermos os bens materiais que buscamos e que, em muitos casos, cremos consciente ou inconscientemente, depender deles para sermos felizes. O consumo sem limites leva à morte e é um problema de nós todos. Eu sinto que tenho uma parcela de culpa pelos mortos de Mariana e pelo rio Doce. E você? Tem mortos na sua conta?

    Notas:

    1.Acesse aqui a matéria sore o aborto
    2.Acesse aqui a matéria sobre preconceito para com as vítimas da tragédia em Mariana
    3.Acesse aqui inúmeras histórias das pessoas que sobreviveram à tragédia.
    4.Acesse aqui o resumo do relatório do IBAMA sobre a reparação ambiental
    5.Acesse aqui diversos infográficos com dados sobre a tragédia

    • Marcelo Renan D. Santos, médico veterinário e ecólogo, congrega na Igreja Batista da Praia do Canto, Vitória, ES.

    http://www.ultimato.com.br/conteudo/consequencias-irreparaveis-da-tragedia-em-mariana

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