A tragédia da liberdade

 

Existem palavras que são portadoras de profundo apelo estético e emocional, que se tornam verdadeiros ícones culturais, ainda que possam ser usadas indevidamente. É o caso do termo “liberdade”. Ao longo das eras, esse tem sido um dos grandes anseios da humanidade, em todos os lugares e nos mais diversos povos e grupos. Nas recentes manifestações de rua que vêm ocorrendo no Brasil, ela se tornou um dos chavões vistos e ouvidos com maior frequência. Todavia, muitos daqueles que reivindicam maior liberdade se esquecem da sua contrapartida, sem a qual ela se torna um grande mal e não um benefício — os deveres, a responsabilidade.

Historicamente, a liberdade sempre foi entendida como o livramento de algum tipo de opressão ou tirania, seja ela política, econômica, étnica, social ou religiosa. Ela fez parte, por exemplo, do famoso lema da Revolução Francesa – “Liberdade, igualdade e fraternidade”. Nesse sentido tradicional, a liberdade sempre possui uma dimensão coletiva, compartilhada. Entretanto, em tempos mais recentes, o vocábulo tem adquirido um tom individualista e personalista. Significa o direito de fazer o que se quer, satisfazer os desejos e aspirações pessoais, não importa o que os outros pensem ou o impacto que isso possa ter sobre a comunidade.

Assim, vemos indivíduos reivindicando liberdade para consumir narcóticos, para cometer atos de vandalismo, para se apossar da propriedade alheia. Na Universidade de São Paulo (USP), considerada a melhor do país, um grupo minoritário de estudantes, mais interessados em fazer política ideológica do que em estudar, tendo o apoio de parte dos funcionários e do corpo docente, ocupa e depreda durante meses o edifício da reitoria para reivindicar o direito de participar da escolha dos dirigentes universitários. Muitos deles são de classe média e estudam gratuitamente numa instituição pública, ou seja, possuem uma situação privilegiada, mas, mesmo assim, querem mais liberdade, mais prerrogativas.

Vale citar outro exemplo que é um tabu na cultura nacional, algo que não deve ser discutido. Existe no Brasil uma lógica perversa: como os pobres são pessoas injustiçadas e sofridas, eles teriam o direito, a liberdade de fazer certas coisas que são vedadas a outras pessoas. Veja-se, por exemplo, o que acontece com os moradores de rua das grandes cidades. Eles se instalam nas calçadas e praças, usam espaços públicos como se fossem propriedade particular, espalham lixo e outros dejetos, mas ai se alguém sugerir que eles devem ser forçados a observar certos padrões de conduta. O poder público, como não cumpre o dever de assistir a essas pessoas, faz vista grossa quando elas transgridem normas e leis, concedendo-lhes uma liberdade que elas não deveriam ter.

Os evangélicos não estão livres dessa síndrome. Acham que, por serem “filhos do Rei”, têm direito a isto ou àquilo. Muitos se deixam contaminar pelos valores egocêntricos da sociedade circundante. Um jovem líder da igreja, ao ser questionado por que estava deixando a esposa para ficar com outra mulher, declarou: “Eu quero é ser feliz!”. A mentalidade de que o cristão, uma vez liberto por Cristo, não deve ficar sujeito a nenhuma lei (antinomismo) já surgiu na igreja primitiva. O apóstolo Paulo lida com esse problema em algumas de suas epístolas. Escrevendo aos crentes romanos que se julgavam livres para comer a carne vendida nos mercados pagãos, ele adverte: “Vede, porém, que esta vossa liberdade não venha, de algum modo, a ser tropeço para os fracos” (1ªCo 8.9). Dirigindo-se aos gálatas, depois de declarar que os cristãos estão livres do jugo da lei, ele acrescenta: “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis a liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor” (5.13; ver 1ªPe 2.16). Em outras palavras, a liberdade não é um valor absoluto, mas deve ser limitada pelos ditames da ética e da convivência.

A partir do Iluminismo, consagraram-se as grandes liberdades democráticas que tantos benefícios trouxeram ao mundo moderno: liberdade de consciência, liberdade de expressão, liberdade de associação, liberdade religiosa. Com o passar do tempo, o protestantismo abraçou esses valores e os difundiu em muitas nações. Contudo, o que se vê hoje de forma crescente é uma liberdade permissiva e insana, não acompanhada de igual ênfase na disciplina, no respeito, no acatamento das leis. Isso tem consequências nefastas numa sociedade como a brasileira, com seu longo histórico de formação ética deficiente, de forte tendência para o desprezo da lei, de instituições viciadas e frágeis. A escalada do crime, os horrores do trânsito, o drama dos tóxicos, o flagelo da corrupção, são todos exemplos dessa tragédia que é a liberdade não acompanhada de um forte senso de valores, de responsabilidade.

Martinho Lutero foi criticado por sua ênfase na “justificação pela graça mediante a fé somente”. Diziam que isso era um convite à negligência moral e espiritual na vida cristã. Bastava ter fé e nada mais era preciso. Respondendo a essa alegação, ele observou que a justificação é pela fé somente, mas nunca por uma fé “que está só”. Em outras palavras, a fé salvadora, se genuína, sempre será seguida de boas obras que agradam a Deus e beneficiam o próximo. É possível parafrasear o grande reformador no que diz respeito à liberdade. Nós – quer como cristãos, quer como cidadãos — somos chamados à liberdade, mas uma liberdade que nunca está só, sendo acompanhada da consciência de que há sempre uma contrapartida, um outro lado da moeda. Nenhuma sociedade pode sobreviver quando todos estão simplesmente à procura de mais direitos, de maiores privilégios. Cumpre, sim, aos pais, aos mestres, aos formadores de opinião e aos líderes em geral educar as novas gerações para a valorização da liberdade, mas nunca em detrimento do dever, da necessidade de limites, do equilíbrio entre os interesses pessoais e os imperativos do bem comum.

• Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A Caminhada Cristã na História e “Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil”. asdm@mackenzie.com.br

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